quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Jeito Felindie - Quanto vale uma homenagem? - André Lemos




Saiu no dia 12 de outubro o "Jeito Felindie", tributo em homenagem ao Raça Negra organizado pelo jornalista Jorge Wagner. Não cabe a mim nesta postagem, descrever faixa por faixa ou analisar musicalmente o tributo que participamos. Vários sites especializados já tomaram tal iniciativa. Vale aqui analisar a relevância, o valor e a probidade de tal feito para a música brasileira. A homenagem para artistas supostamente desprestigiados ou com o seu valor não reconhecido dentro da música brasileira é algo que acontece de tempos em tempos. Na história recente, tais homenagens vão desde as séries de shows  do SESC em 2004 com o "Popular ou brega?"e em 2005 "Romântico ou cafona". Até as gravações de cds em homenagem a Reginaldo Rossi em 1998, Odair José em 2006 e a Ronnie von em 2007.Aos considerados primos pobres da música brasileira, sempre ocorre o seu momento de consagração de quem os renega.    
tributo de 2007 a Ronnie Von


tributo de 2006 a Odair José
tributo de 1998 a Reginaldo Rossi
A trajetória do Jeito Felindie não é diferente de outros tributos, que visam desembaçar a cultura musical brasileira. Porém nele há a existência de alguns elementos interessantes. Isto começa desde a escolha do Raça Negra e automaticamente o estilo que ele representa (o pagode) e a seleção dos grupos, bandas independentes do cenário alternativo. Muito além da discussão pueril sobre tornar ou não tornar cult o pagode, ou valorizar algo que já possui estrada e mérito reconhecido, o Jeito Felindie toca na ferida da música popular ao propor uma reflexão sobre as suas representações no imaginário coletivo.

Carlos Alberto Bonfim  Doutor em Comunicação e Cultura pela USP, em 2009 defendeu no V ENECULT em Salvador o trabalho "EU NÃO SOU CACHORRO, MESMO: MÚSICA POPULAR URBANA, CULTURAS JUVENIS E IDENTIDADE CULTURAL. Neste trabalho o acadêmico mapeou tributos dedicados ao brega tradicional entre o período de 2004 a 2007, percebeu através dessa análise a intensa comunhão musical e afetiva em torno dessas homenagens. Entretanto o que menos interessava ao pesquisador era o caráter de originalidade destes tributos e sim o sentido que eles ganhavam. Pelas suas próprias palavras evidencio o foco da sua atenção: "...indagar sobre os sentidos deste recorrente modo de agenciar repertórios musicais  heterogêneos.  Que sentidos se insinuam neste gesto de render tributo a artistas e a um  repertório que – embora tenha sido estigmatizado como brega – embalou os dias de uma parcela expressiva de ouvintes?" A ressemantização desse repertório é o que vale, a quebra de preconceitos e de esteriótipos moldados ao longo do tempo contra determinado artista ou estilo cai por terra e se não cai, causa pelo menos a sensação de estranhamento de deslocamento do ouvinte perante a obra ressignificada e do seu tradutor ganhando novas disputas simbólicas.

No caso do Jeito Felindie penso que o Raça Negra não precisava de uma homenagem porém precisava. Não precisava pela sua história, a inovação do samba pelo seu hibridismo, transformou o pagode "raiz" agregando novos instrumentos trazendo uma roupagem pop. Tornou o pagode que eles criaram um modelo para outras gerações de pagodeiros. E dessa maneira se percebe que o samba nunca agonizou e nem morreu graças a criatividade e inventividade de grupos como o de Luiz Carlos e sua turma. O teórico e PhD em musicologia Luiz Fernando Nascimento de Lima fala o seguinte: "Em 1990, o Raça Negra aparecia com um perfil romântico - contrastante com o do disco Raça Brasielira - que misturava elementos de baladas pop internacional, música sertaneja e ritmos de samba (Raça negra 1990). Além disso, Raça Negra usava bateria, baixo ele´trico, saxofones e sintetizadores...A partir desse momento, o novo pagode iria se tornar um novo modelo..." 

Quando todos esses elementos se tornam inexistentes para o olhar dos críticos, ou para aqueles que pensam cultura e música de uma maneira restrita, o tributo não é somente necessário como VALE OURO e não corresponde aqui, citando Marilena Chauí a um "autoritarismo vanguardista e iluminado". É o que Hermano Vianna sempre chamou a atenção e lutou contra, uma prática viciada no olhar sobre a cultura popular urbana sendo sempre considerada vazia, pobre e alienada e assim o tributo se torna um prêmio a um "Brazil" que insiste em não conhecer o Brasil.

O que Carlos Bonfim defendeu em 2009 sobre as homenagens em torno do brega tradicional caem como uma luva pra o Jeito Felindie hoje, observe atentamente o que foi dito: "Aquele repertório deixa entrever não apenas a formação estético-musical-afetiva de um conjunto de artistas, mas revela, sobretudo, parte significativa de nossas histórias individuais e coletivas.[...] em outras palavras, estas canções fazem parte de um repertório, de um acervo sentimental que ainda não foi devidamente considerado. Ao contrário: no Brasil (e até onde pude pesquisar, também nos demais países latino-amaericanos), os estudos e as numerosas publicações sobre a música popular realizadas ao longo da últimas décadas omitiram sistematicamente qualquer referência a uma produção que faz parte do imaginário de grande parte da população latino-amaericana."

Termino essa postagem agradecendo ao amigo e jornalista Jorge Wagner pelo convite feito ao projeto Orquestra Superpopular. Desde o início já previa o sucesso e o prazer de participar com a canção "Me leva  junto com você" para o tão falado "Jeito Felindie". Iniciativas como essa, agregam o valor plural da música brasileira, quebram barreiras preconceituosas em torno do cancioneiro popular brasileiro. Mais uma vez, muito obrigado!

Download do "Jeito Felindie":

Segue o link dos trabalhos acadêmicos acima citados:

Carlos Bonfim
EU NÃO SOU CACHORRO, MESMO: MÚSICA POPULAR URBANA,
CULTURAS JUVENIS E IDENTIDADE CULTURAL
http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19455.pdf

Luiz Fernando Nascimento de Lima
O PAGODE DOS ANOS 80 E 90: CENTRALIDADE E AMBIVALÊNCIA NA SIGNIFICAÇÃO MUSICAL.
http://seer.ufrgs.br/EmPauta/article/view/9387/5425